sexta-feira, 27 de maio de 2011

Vivissecção se faz necessária nos dias atuais? -2

Vivissecção, parte 2: a justificativa moral da vivissecção


© 2007 Gary L. Francione
©Tradução: Regina Rheda
©Ediciones Ánima- Publicado en: http://www.anima.org.ar
Texto do Blog de Gary L. Francione
Quarta-feira, 16 de maio de 2007
Em Vivissecção, parte 1: a “necessidade” da vivissecção, eu discuti os problemas em torno da afirmação de que o uso de animais não-humanos em experimentos biomédicos é, em termos factuais, “necessário” a fim de obtermos dados para o propósito de solucionar problemas de saúde humana. Neste ensaio, quero explorar brevemente o argumento de que, mesmo se o uso de animais for necessário no sentido de que precisamos usar não-humanos para conseguir dados vitais, não podemos justificar o uso de não-humanos para tal propósito.
Tanto os animais humanos quanto os animais não-humanos têm interesse em não ser usados em experimentos biomédicos. Nós damos a todos os humanos o direito de não ser usados, sem seu consentimento, como sujeitos nesses experimentos. E damos esse direito apesar de que seria mais eficaz usar humanos, já que isso nos possibilitaria prevenir não só as dificuldades que eu discuti no ensaio precedente, ligadas à extrapolação, para os humanos, dos resultados obtidos com os não-humanos, como também os outros problemas que fazem, da pesquisa usando animais, uma atividade problemática, na qual não podemos confiar do ponto de vista científico.
Quando dizemos que os humanos têm o “direito” de não ser usados para esse propósito, isso significa simplesmente que o interesse dos humanos em não ser usados sem seu consentimento em experimentos será protegido, mesmo que as conseqüências de usá-los sejam bastante benéficas para as outras pessoas. A pergunta que devemos fazer, então, é: por que nós achamos que é moralmente admissível usar não-humanos em experimentos, mas achamos inadmissível usar humanos?
Historicamente, têm sido apresentadas três razões principais para se afirmar que é moralmente admissível usar não-humanos em situações nas quais não consideraríamos permissível usar humanos.
A primeira razão é que os animais não são sencientes. Por exemplo, o filósofo francês René Descartes (1596-1650) afirmava que os animais não são nada além de autômatos, ou robôs, criados por Deus. Segundo Descartes, os animais não têm almas, que são essenciais para a consciência, portanto eles não podem ter a experiência da dor e do prazer, nem qualquer outra sensação ou emoção. Descartes também interpretou o fato de os animais não usarem linguagem verbal ou linguagem de sinais como uma indicação de que eles não têm consciência. Se Descartes estivesse correto, falar sobre os animais terem interesses seria tão insensato quanto falar sobre os relógios terem interesses, e seria absurdo dizer que temos alguma obrigação moral ou legal para com os animais.
Eu acho que ninguém, com exceção de uns poucos filósofos afeitos a uma controvérsia acadêmica só pela polêmica em si, ainda continua afirmando que os animais não são sencientes. De fato, toda a base das leis contra crueldades e dos estatutos como a Lei do bem-estar animal é o fato de que os animais são sencientes e, portanto, têm, sim, interesse em não sofrer.
A segunda razão é que, embora os animais sejam sencientes e tenham interesse em não sofrer, eles não têm “almas”, ou então são “espiritualmente inferiores” aos humanos, e Deus nos deu permissão para usá-los para os nossos propósitos. Essa crença não apenas serviu, historicamente, como uma parte importante da nossa justificativa para explorar os não-humanos, como também tem relevância para os dias de hoje, num mundo que vem abraçando cada vez mais as ideologias religiosas fundamentalistas. Embora eu certamente ache que a moralidade do uso de animais pode ser examinada mesmo dentro dessas ideologias, eu também acho que tal discussão é apenas tangencial a este tópico, porque a maioria dos cientistas e pesquisadores que defendem a experimentação animal não se apóia em justificativas religiosas, pelo menos não explicitamente.
A terceira e mais importante razão é que, embora os animais sejam sencientes e tenham interesse em não sofrer, nós podemos ignorar esse interesse quando isso nos beneficiar, porque falta-lhes alguma característica supostamente exclusiva dos humanos—normalmente uma característica cognitiva—o que os torna “naturalmente inferiores” a nós. Ou seja, há alguma diferença cognitiva qualitativa entre os humanos e os não-humanos que, supostamente, justifica tratarmos os animais exclusivamente como meios para nossos fins. A lista de características que supostamente apenas os humanos têm inclui autoconsciência, razão, pensamento abstrato, emoção, a habilidade de se comunicar por meio da linguagem simbólica e a capacidade para o comportamento moral.
A noção de que os humanos têm características mentais sem equivalentes entre os não-humanos é inconsistente com a teoria da evolução. Darwin sustentava que não existem características exclusivamente humanas: “A diferença mental entre o homem e os animais mais evoluídos, mesmo sendo grande, é certamente uma diferença de grau e não de natureza”. Os animais são capazes de pensar e têm muitas das mesmas emoções que os humanos. “Os sentidos e as intuições, as várias emoções e faculdades, como amor, memória, atenção curiosidade, imitação, razão, etc., dos quais o homem se vangloria, podem ser encontrados em condição incipiente, ou às vezes até em condição bem desenvolvida, nos animais menos evoluídos”. Darwin assinalou que “animais associados têm um sentimento de amor um pelo outro” e que os animais “certamente se solidarizam com seus semelhantes que estão aflitos ou em perigo”. (C. Darwin, The Descent of Man and Selection in Relation to Sex. Princeton: Princeton University Press, 1981: ps. 105, 76, 77).
Etólogos cognitivos e outros especialistas confirmaram que os animais, incluindo os mamíferos, os pássaros e os peixes, têm pelo menos o equivalente das características cognitivas antes consideradas exclusivas dos humanos. Os animais não-humanos são inteligentes e capazes de processar informações de maneira sofisticada e complexa. São capazes de se comunicar com outros membros de sua espécie e também com humanos. As semelhanças entre os humanos e os animais não estão limitadas aos atributos cognitivos ou emocionais. Algumas pessoas argumentam que os animais também exibem comportamentos que são claramente morais. Há inúmeras instâncias em que os animais agem de maneira altruísta em relação a membros da própria espécie com os quais sequer têm parentesco, e em relação a membros de outras espécies, incluindo os humanos.
Apesar de certamente parecer que os animais não-humanos possuem características tidas como unicamente humanas, eu reconheço que há um debate sobre esse ponto, e que existem, de qualquer modo, diferenças entre a mente humana e as mentes dos não-humanos, pois estes últimos não usam comunicação simbólica. No entanto, por uma questão de bom razoamento lógico, nós não podemos justificar nossa exploração dos animais não-humanos recorrendo ao fato d’eles supostamente não apresentarem certas características cognitivas parecidas com as dos humanos, ou qualquer outra característica além da senciência (consciência subjetiva).
Qualquer tentativa de justificar o tratamento dos animais como recursos, baseada no fato d’eles não terem características cognitivas consideradas exclusivamente humanas, pressupõe logo de cara que certas características humanas são “especiais” e justificam um tratamento diferenciado. Embora haja coisas que só os humanos podem fazer (apesar de que nem todos os humanos sejam capazes de fazê-las), há coisas que só os não-humanos podem fazer. Só humanos são capazes de compor sinfonias, fazer cálculos ou se reconhecer no espelho, mas só não-humanos podem voar ou respirar debaixo d’água sem ajuda. O que torna nossas características especiais, é claro, é que nós dizemos que elas são especiais. Mas, fora essa posição, que obviamente privilegia nossos próprios interesses, não há razão nenhuma para concluirmos que características consideradas exclusivamente humanas podem servir de justificativa não-arbitrária para tratarmos os animais como nossos instrumentos de laboratório. Essas características podem servir para isso apenas depois de nós pressupormos que elas têm relevância moral.
Além disso, mesmo que falte, a todos os animais não-humanos, determinada característica além da senciência, ou mesmo que eles a tenham num grau diferente ou de uma maneira diferente da dos humanos, não há nenhuma relação logicamente defensável entre a falta ou o grau menor dessa característica e o nosso tratamento dos animais como recursos. As diferenças entre os humanos e os outros animais podem ser relevantes para outros propósitos. Ninguém argumenta que deveríamos deixar animais não-humanos dirigir automóveis, votar ou fazer faculdade. Essas diferenças, contudo, não têm nada a ver com a idéia de que é moralmente justificável tratar os animais como propriedade humana e usá-los como sujeitos em experimentos sem seu consentimento. Isso é claro quando consideramos o status moral dos humanos. Qualquer característica que nós identificamos como exclusivamente humana está presente em menor grau em alguns humanos, ou está ausente em outros. Alguns humanos têm exatamente as mesmas deficiências que atribuímos aos animais, e embora tais deficiências possam ser relevantes para alguns propósitos, a maioria de nós rejeita a idéia de que elas fornecem uma justificativa moral para usarmos seres humanos em experimentos biomédicos.
Considere, por exemplo, a autoconsciência, que muitos têm julgado a mais importante de todas as características tidas como exclusivamente humanas. O filósofo Peter Carruthers define a autoconsciência como a habilidade de se ter uma “experiência consciente… cuja existência e conteúdo estão disponíveis para serem pensados conscientemente (isto é, disponíveis para serem descritos em atos de pensamento que estão, eles mesmos, disponíveis para posteriores atos de pensamento)”. (P. Carruthers, The Animals Issue: Moral Theory in Practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1992: p. 181).
Mas muitos humanos, como aqueles com graves problemas mentais, não têm autoconsciência nesse sentido. No entanto, nós não consideramos permissível usá-los como usamos os animais “de laboratório”. O fato de o ser humano com problemas mentais não ter um determinado tipo de autoconsciência pode justificar um tratamento diferenciado em alguns aspectos. Por exemplo, pode ser relevante para decidirmos se lhe damos um emprego de professor universitário, ou para decidirmos se o deixamos dirigir um automóvel. Mas não tem relevância para decidirmos tratá-lo exclusivamente como um recurso e usá-lo em dolorosos experimentos, ou forçá-lo a doar órgãos, se isso nos beneficiar.
Apoiar-se em características cognitivas além da senciência para justificar o uso dos não-humanos em experimentos requer uma destas duas posições: ou pressupomos que tais características são moralmente relevantes, ou ignoramos o fato de que, quando se trata de humanos, não consideramos moralmente relevante a ausência dessas características. Só nos resta portanto uma única razão para explicar nosso tratamento diferenciado dos animais: nós somos humanos e eles não, e é somente a diferença de espécie que justifica o tratamento diferenciado. Mas esse critério é inteiramente arbitrário, e é igual a afirmarmos que, embora não haja características especiais que sejam próprias apenas dos brancos, nem defeitos presentes nos negros que também não estejam presentes nos brancos, nós podemos tratar os negros como se fossem inferiores aos brancos, baseando-nos meramente na raça. Também é igual a dizer que, embora não haja características especiais próprias apenas dos homens, nem defeitos que só as mulheres tenham, podemos tratar as mulheres como se fossem inferiores aos homens, baseando-nos meramente no sexo.
A imensa maioria dos usos que fazemos dos animais não-humanos—para comida, entretenimento, caça, vestuário, etc.—não pode ser caracterizada como “necessária” em nenhum sentido coerente da palavra. O uso dos não-humanos na pesquisa biomédica pode envolver uma alegação plausível de necessidade, embora, conforme argumentei no ensaio precedente, tal alegação é problemática sob inúmeros aspectos. Mas essa alegação, mesmo se justificada, não serve para fornecer uma base moral que sustente esse uso de animais.
Isso conclui minha discussão sobre a vivissecção da perspectiva da necessidade empírica e da justificativa moral. Espero que estes ensaios estejam suficientemente breves e acessíveis, e que sejam úteis para os defensores dos animais, quando eles tiverem de discutir esta questão com outras pessoas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário