segunda-feira, 18 de julho de 2011

Um pouco mais do post anterior-Maldita Coincidência-Sérgio Bianchi


Patrício Bisso em Maldita Coincidência de Sérgio Bianchi
O problema do gostar ou não gostar é bastante secundário em se tratando de um filme assinado por Sérgio Bianchi. O debate aqui vai mais longe, os parâmetros a se buscar são outros: de tal forma o autor identificou suas fitas à vida do país, se preocupou em pensar o momento histórico, que, antes de tudo, elas se impõem como fitas importantes, fundamentais até. Só mesmo o pouco caso das inteligências médias em relação a tudo o que diz respeito ao cinema brasileiro pode explicar a indiferença com que o trabalho de um diretor maior – salvo pelo média-metragem Mato Eles? – era recebido até bem pouco tempo atrás. Um filme de Bianchi, ficamos com as palavras de Edmar Pereira, "é um filme para ser amado, é um filme para ser odiado. Ignorado, nunca"1. É o que se pode chamar de obra orgânica: a realidade nos remete ao filme, que por sua vez nos devolve, a partir de seus signos trabalhados, ao processo social. E numa época em que a grande maioria da produção nacional não diz a que vem, o que pode haver de mais significativo em filmes comoMaldita ConsciênciaRomanceA Causa Secreta e Cronicamente Inviável é a vontade sem controle de derrubar os falsos mitos desse cineminha anódino: mostrar quem somos, o buraco para o qual estamos caminhando é tarefa do cinema.
Ir um pouco mais longe nessa idéia, do cinema como espelho privilegiado do país e de sua gente, equivale a dizer que todo filme é de certa forma político, pois documento de uma época – mesmo que sem pedir este papel, mesmo sendo o mais escapista possível. No cinema, é preciso lembrar, a fronteira entre as duas instâncias (o objetivo e o subjetivo) é em todos os sentidos muito mais fluída, e uma fita execrável, como o é Guerra de Canudos, me diz muito mais sobre certa "vontade" de História (sic) nos anos 90 do que qualquer outro filme. É como se, de certa forma, todos os caminhos levassem à mesma direção, até aqueles que de início possam dar a impressão de se afastar do problema. Mas se hoje também o público parece se omitir face a esse forte referencial histórico dos filmes (da cultura, enfim), talvez a única saída para vencer a resistência seja mesmo o uso do choque. O próprio Bianchi coloca esse problema emCronicamente Inviável: "Não adianta mostrar a realidade para as pessoas que elas entendem tudo como ficção". Por uma a pedagogia do choque então: como as chanchadas e os filmes eróticos involuntariamente chocavam, como quase todo filme popular feito por aqui sempre provocou a repulsa, apesar de falarem muito sobre nós, mesmo que através de defeitos. Mas nos filmes de Bianchi essa relação está muitas vezes reforçada pelo próprio princípio da criação: apreender, pelas próprias entranhas de quem constrói, a existência do monstro. Seja na falsa euforia desenvolvimentista da ditadura, seja no ocaso do sonho liberal, há uma evidente e importante sintonia que se faz – para o bem e para o mal – entre o Brasil contemporâneo e os filmes de Bianchi.
Mãe gentil, cadê o bolo? – Maldita Consciência foi realizado em 79 e só chegou às telas em 83, mas o filme se refere principalmente a um passado próximo: "Era uma vez 1973...", é o que ficamos sabendo pelo letreiro inicial. A história é conhecida: o bolo do Delfim deveria estar grande e supostamente chegaria o tempo de reparti-lo, mas... Bom, as histórias nem sempre são como nos contam as babás – é preciso saber disto – e para uma geração inteira, do bolo só ficou o gosto amargo da derrota na boca. Aqui, o berço esplêndido onde toda (não-)história se passa é um casarão em ruínas, há apenas um espectro sem brilho da imponência que sempre se desejou. O milagre econômico acabava, um fiasco, mas que tinha cumprido sua função maior: desorganizar de vez a esquerda, fechar as perspectivas, criar a saudade da ação. É nesse contexto melancólico que um grupo de jovens, literalmente, se debate – a guerrilha fracassou, o exílio não era resposta... sobrava oflower power da sociedade alternativa?
A não-narratividade, a fragmentação exacerbada que parece levar a lugar algum, é o signo fundamental desse fim da utopia, do sonho que se perdeu; tudo que se vê na tela – a "ação", o cotidiano de conversas sem muito sentido, de frustrações, desesperança e falsas ilusões dos moradores do casarão – fica limitado entre duas situações. Primeiro, a carta que o chefe da casa recebe com a ordem (sabe-se lá de quem) para recolher todo o lixo entulhado pelos jardins; e depois, já quase no fim do filme, a antológica discussão sobre se eles deveriam ou não sair daquela modorra e enfim catar a sujeirada. Entre um bando de pessoas que parecem sedadas (infantilizadas?), o chefe da casa diz: "A gente tem é que se mexer, parar com essa baboseira!", ao que a única outra moradora a entrar na discussão rebate: "Que nada!, a gente tem que dar um sentido ideológico à ação... a gente tem que ter um motivo maior, ou então não adianta nada" – e a questão se coloca e se repete nestes mesmos termos por minutos. Mas ao contrário do que se pode pensar, Maldita Consciência não é um filme enquadrado, no esquema, que segue a esquerda de cartilha; o dado mais importante no filme – na posição do diretor, digamos assim – é não se fazer de joguete da repressão, não mergulhar numa atitude estéril, na renúncia saudosista de quem não soube se adaptar à triste nova realidade. O efeito é agitar, buscar novos caminhos, daí o filme terminar com um belo monólogo que tenta apontar saídas para os dilemas dos personagens: o trabalho, necessário sim, mas o trabalho realizador, não o emprego de escritório – é essa a tradição nada singela a se buscar.
A volta dos que não foram – Meados dos anos 80, a "redemocratização" do Brasil após os anos de chumbo está mais nos jornais e na TV do que nas ruas, e alguém lembra em Romance: no que deu as Diretas Já? O retrato desse "gigante" antidemocrático "pela própria natureza" das pessoas, da elite tacanha de idéias e princípios, se constrói com mais força nos melhores – entre os muitos – lances debochadamente iconoclastas do filme. A remediada com pretensões burguesas está no restaurante, a comida demora e ela começa a avacalhar com o garçom: "Mas você é mesmo uma besta! Você já parou para pensar porque é garçom? Porque não consegue fazer nada que preste!", e por aí vai; depois de um bom tempo, aparece a voz do diretor, do próprio Bianchi, irritado: "Porra!, a gente tá aqui há dois dias, eu já disse que não é assim que eu quero. Você tem que falar desse jeito e tal...", até entrar diante do quadro, no lugar da atriz, e mostrar como se deve esculhambar com o mais fraco.
Bianchi filma uma espécie de Acossado (talvez este seja o seu filme mais desesperado, por isso mesmo o mais libertário), uma fita em que também é preciso fazer a escolha, e ao final é como se fosse dito: "entre a dor e o nada, eu escolho a dor". A citação de As Palmeiras Bravas do Faulkner – de todo caso, já usada no filme do Godard – não é gratuita dentro do desdobramento final, da trajetória ideológica do filme, como disse Bianchi, "uma visão de falência de posições"2. Diante do vazio político, do vazio humano, do vazio de perspectivas, parece mesmo só haver dois caminhos a seguir: o suicídio ou a cooptação pelo sistema. Além do mais, é assim que se sente – acossada, perseguida – a jornalista que pesquisa o testamento intelectual de Antônio César, o escritor que foi assassinado porque denunciava a politicagem e os esquemas de corrupção nas jogatinas burocráticas. Mas o suicídio não é aqui uma renúncia, é antes uma impossibilidade (como em O Bandido da Luz Vermelha), como um amor impossível – daí quem sabe a ironia do título, este sem dúvida não é um filme de amor. Pois desde o começo, Romance lida com a morte: a primeira cena é a do enterro de Antônio César (o "herói fechado" a ser reconstruído no filme), como que anunciando que suas idéias não podem triunfar num mundo tão pobre de espírito e de escrúpulos, que não há mais lugar nem condições para elas existirem. Essa é uma radicalidade que se justifica plenamente ao longo da projeção: afinal que "ruptura" é essa a da Nova República?, essa falsa mudança que antes de mais nada foi consentida, longamente planejada para que os mesmos nomes (a figura do deputado de Sérgio Mamberti é exemplar) continuassem mandando no país. Um bom epílogo para Romance: "Façamos a revolução antes que o povo o faça", como disse o "insurgente" Antônio Carlos – não o senador baiano, mas o ex-presidente mineiro.
Quando eu sonhasse não tinha mas jeito – Por que "cronicamente inviável"?, é a pergunta a se fazer mas que, nessa discussão ainda quente, foram poucos os que puderam achar uma resposta. PoisCronicamente Inviável foi em geral muito mal visto: as interpretações equivocadas foram tantas e de tamanho grau que houve margem para as maiores barbaridades escritas e faladas. Escreveu-se, por exemplo, que "o filme permite a conclusão de que a miscigenação racial torna a unidade nacional inviável"3 (sic!!), como se o motivos de todos os males estivessem na miscigenação em si e não na completa falta de ética em que ela se realizou desde sempre, videMato Eles?. A se acreditar em tudo que é cinicamente colocado na fita pela voz do narrador, só falta concluir que o país é inviável por causa do sol forte, do clima tropical (sabe como é, não ajuda muito a trabalhar – e pelo visto nem a pensar); ou então, inviável devido às raízes da colonização, feita pelos incompetentes portugueses (Ah!, se fossem os ingleses, os franceses...).
Vale dizer que as pessoas não estavam preparadas para o filme, tanto quanto não estão para terem um olhar crítico diante das coisas, seja no cinema, seja na vida. A estreiteza do debate em volta da fita só vem a mostrar como todos nós só conseguimos ver, no máximo, os efeitos do problema – a causa nunca é combatida, ela está sempre além, nos outros, na corrupção e não no sistema que permite que ela se reproduza, no conformismo do noticiário no telejornal que até pode dizer que a coisa está feia, mas que é assim mesmo, o jeito é trabalhar, viver e quem sabe se dar bem e passar as férias em Miami. É, nesse sentido, a expressão da lógica do individualismo extremo, mais ou menos como se os problemas fosse sempre só os meus e os culpados só eles, os outros. Então, vale responder, o por quê desse inviável? Porque a miséria é perfeitamente explicável na lógica burra do capitalismo selvagem4; porque se o salário-mínimo for aumentado (no filme, o salário de fome da empregada e sua família) o país quebra, a começar pela "divina previdência"5 do Estado; porque, para haver a riqueza, é preciso que haja também a pobreza dos explorados; porque, enfim, Bianchi quis construir um painel do Brasil feito, como no poema concretista, de um grande luxo moldado a partir de vários e pequenos lixos, menos visíveis de longe mas muito mais numerosos de perto, a subsidiar o país. Porque do jeito que está não deu nem vai dar pé, cronicamente.
O que incomoda no filme não é o fato de ele ser pesado demais (quem pensou assim é porque estava predisposto a não embarcar numa proposta dessas), o que mais incomoda é o riso fácil desse público, a gargalhada – quando na verdade ele deveria suscitar o riso amarelado, sem graça, engasgado diante do patético das próprias vidas reconhecido na tela. A graça está sempre nos olhos dos outros, de quem vê: é esse o distanciamento fundamental do filme, sua falha mais evidente. Por mais que se queira espalhar a lama, mostrar que a sujeira é de todos, sempre fica a sensação de que aquilo tudo na tela só nos diz indiretamente, pois a nossa parte está feita, a culpa da debilidade do país é dos outros. Se o sujeito ri dos sem-terra, (rá-rá-rá, muito engraçado) e depois vai para casa se "informar" com a Veja6, que papel se cumpriu? O de boa consciência, de falsa desalienação, do papel falsamente cumprido que não ajuda a mudar as coisas – como uma exposição cheia de pena do Sebastião Salgado. Nesse sentido, CI é o oposto de todos os outros filmes de Bianchi, basta ver o titulo de seu longa de estréia. O que move a direção em todos os filmes anteriores é exatamente a má consciência que não poupa nem a si mesmo – o final de Mato Eles? é exemplar nisto. Mas aqui, a posição em que Bianchi se coloca, a de ponto perfeito de observação, aparentemente inatingível, é no mínimo muito confortável, desvirtua a criação, e no fim das contas, ele tem uma atitude bem parecida com a de quem critica, cai na própria armadilha: "Estão vendo? Eu não disse, esse país não tem jeito mesmo...", é como se ouvíssemos ao longo do filme.
Mas cronicamente inviável – o filme nos revela indiretamente – não é só o Brasil, é também o fazer cinema7 em um país sem sonhos, para um povo feito de pessoas voltadas para os próprios probleminhas, pessoas que só vêem sua própria imagem na TV, quando muito. E fica a pergunta: será que ainda é possível sonhar, fazer filmes de verdade?


Por Juliano Tosi

Fonte: http://www.contracampo.com.br/19/brasilredescoberto.htm

1 "Um retrato do Brasil. Com a rebeldia de Sérgio Bianchi", Jornal da Tarde (SP), 28/04/1988.

2 idem

3 "Bianchi eterniza o Brasil aos 500 em ‘Cronicamente Inviável’", Folha online

4 E nesse sentido o filme se aproxima muito de Ilha das Flores.

5 Título de um curta-metragem de Bianchi

6 Lembro de uma propaganda recente da revista, numa edição em que o MST era manchete: "Primeiro, sem-terra. Depois, sem razão". Só faltou completar o péssimo sofisma: sem-terra porque sem razão.

7 O próprio Bianchi colocou a questão nesses termos
  

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