quarta-feira, 27 de julho de 2011

Cria Cuervos - Porque te vas




Título original: Cría cuervos
Direção: Carlos Saura
Gênero: Drama
Tempo de duração: 104 minutos
Ano de lançamento: 1976
Sinopse: Ganhador do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes e Indicado ao Globo de Ouro e ao Cesar de Melhor Filme Estrangeiro, Cría Cuervos é uma obra dirigida por um dos mais importantes diretores da Espanha, Carlos Saura. Nesta obra, Saura analisa as relações familiares durante o franquismo através da história de Ana (Geraldine Chaplin) e suas tristes lembranças de 20 anos atrás, quando aos nove anos, ela vê seus pais morrerem em um pequeno espaço de tempo. Na época, sozinha, Ana pensava ter um estranho poder sobre a vida e a morte de seus familiares. Remorso que carregou para a fase adulta, junto com o sentimento de culpa, por achar-se a responsável pela repentina morte do pai (Héctor Alterio). Esperanças, frustrações e paixões retratadas do ponto de vista de uma criança.



Ótima resenha do blog Cinama-filia:  http://cinema-filia.blogspot.com/2007/09/cra-cuervos-cra-cuervos-1977.html  Segue abaixo:




“Não entendo por que dizem que a infância é a época mais feliz na vida de alguém”, lamenta Ana, agora adulta. Ana é a melancólica protagonista de Cría Cuervos, do espanhol Carlos Saura, relato assombroso e cruel de uma família marcada pelo luto permanente e por aflições internas difíceis de solucionar. O contato de uma criança com a morte pode ser traumático, causar impressões que talvez nunca irão se dissolver. Quando tinha 8 ou 9 anos de idade, Ana assistiu à mãe, uma jovem que desistira da carreira musical em favor do casamento, definhar num rito fatal de agonia e ao pai, um oficial do exército do general Franco, entregando-se a uma relação extra-conjugal até morrer de parada cardíaca em plena transa com a amante. Imagens que ficariam gravadas em sua memória e que seriam resgatadas no enorme flashback que é Cría Cuervos. Na ausência precoce dos pais, Ana e suas duas irmãs passam a morar sob a tutela de uma tia repressora (porém educadora ao extremo) e em companhia de uma avó inválida e muda. Infância tão problemática que estudantes de psiquiatria fariam qualquer negócio para tomá-la como base de teses, mestrados ou monografias científicas.

À maneira de Ingmar Bergman, Carlos Saura preenche a narrativa com breves encontros entre Ana e os falecidos pais, sobretudo a mãe, em planos filosóficos e — por que não dizer? — mágicos. Aprofundando-se no tema, deduzimos que se trata de uma história de fantasmas, só que estes não assustam, ao contrário, eles confortam (tipo Fanny e Alexander). Com considerável quantidade de mágoa e pesar, Ana rememora certos episódios envolvendo o pai, porém a companhia “sobrenatural” da mãe se mostra muito mais agradável. Quando Maria, sua mãe, ressurge em meio aos abafados, mal-iluminados e silenciosos cômodos da casa, Ana consegue então desfrutar pequenos instantes de descontração, muitas vezes interrompidos por suas companhias vivas. O sufrágio faz compensação ao clima soturno do cotidiano, desenhando um paralelo à ditadura de Franco (Saura, aliás, teria negado em entrevistas posteriores qualquer intenção de metaforizar o período franquista, mas é quase impossível passar em branco pelo contexto político que a fita parece evocar, embora “acidentalmente”).

Aos poucos, revelam-se os enigmas da profunda tristeza nos gigantescos olhos da atriz mirim Ana Torrent (que também atua no estranho, porém interessante O Espírito da Colméia, de Victor Erice). A menina cresce presenciando constantes brigas entre os pais, o martírio da mãe sendo consumida por uma grave doença, a tia fazendo repreensões severas à mesa de jantar, etc. A relação com os adultos é toda vez conturbadíssima, e a morte deixa de ser um monstro de sete cabeças, passando a ganhar ares benévolos na maior parte dos casos. Ana fica obcecada com a morte; ela pode sofrer com a perda da mãe ou de um bichinho de estimação, mas também deseja de todo coração o desvanecimento da tia e até propõe suicídio à avó!

As fotografias de viagens, festejos e demais eventos alegres exibidas na abertura do longa dão clara pista do que está por vir: um emaranhado de lembranças, típico daqueles “filmes chororô” que costumam levar pra casa uma penca de prêmios (mas Cría Cuervos está longe de ser um melodrama vulgar, devo sublinhar). As regressões de Ana descrevem os personagens com suas características mais acentuadas, tudo aquilo que se precisa conhecer a respeito de cada um. Ao final, notamos que a essência da obra está concentrada especialmente na pequena protagonista, na mãe e na avó, as três simulando diferentes gerações na inconstante Espanha do século 20: a avó presa à cadeira de rodas representa o país do pré-guerra, ancorada pelos souvenires que enfeitam as paredes da casa, sem mais força para falar, apenas aguardando um basta a sua própria decadência; Maria é a moça enferma e neurótica que reproduz a paranóia incutida na população pelo franquismo; enquanto que Ana é a esperança de dias melhores, entretanto cheia de angústia e feridas herdadas pelos antepassados, algo que explica um pouco seu desejo destrutivo para consigo e para com as coisas que não funcionam conforme gostaria. As cenas em que a menina conversa com a avó são de uma ternura e de uma leveza ímpar, o encontro do passado com o futuro em meio ao caos deixado pela mãe em seqüências dramáticas e pesadas.

Está certo que hoje em dia Carlos Saura é mais conhecido pelos musicais com que, há mais de duas décadas, vem homenageando a cultura hispânica, tais como CarmenBodas de Sangue e Tango, trabalhos pouco relevantes a meu ver, embora curiosos e atípicos. Todavia, Saura demonstrou em sua primeira fase cinematográfica um domínio raro do drama psicológico. Foi nesse período que ele lançou, por exemplo, Ana e os LobosElisa, Minha Vida, e, claro, Cría Cuervos (possivelmente sua obra máxima), todos sustentados por atuações magistrais de Geraldine Chaplin (sua ex-mulher), atriz que viu eclipsada a chance de alcançar o devido reconhecimento pelo peso histórico do pai. Mesmo depois de 30 anos, Cría Cuervos permanece ereto como um monumento ao que de melhor se produziu no cinema espanhol pós-Buñuel e pré-Almodóvar. Pena que o realizador não tenha seguido sua primeira fórmula com a mesma fidelidade, rendendo-se ao mainstream com produções bem mais comerciais e bem menos ricas. Para quem esteve por trás de filmes como Cría Cuervos, levar fama por musicais de dança flamenga é quase um desaforo. 

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